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22/12/2017
Qual é o futuro do dinheiro - e quais riscos enfrentamos?

Não se surpreenda ao entrar em um restaurante da rede americana KFC em Hangzhou, no leste da China, e ver dezenas de pessoas sorrindo para comprar comida.

Ali uma câmera no balcão analisa o rosto do cliente, verifica sua identidade a partir dos registros do aplicativo Alipay e, em poucos segundos, o pagamento é efetuado.

Hoje em dia, smartphones permitem que digitais, íris e voz - ou até mesmo a própria presença física em uma loja - sejam suficientes para pagar por compras.

Na África, por exemplo, é comum comprar a passagem de ônibus ou transferir dinheiro por meio de uma mensagem de celular.

Esse setor vem evoluindo tão rapidamente que está cada vez mais difícil prever exatamente o que vai acontecer nas próximas décadas.

Mas uma coisa é certa: milhões de pessoas vêm usando seus smartphones não apenas para fazer pagamentos, mas para gerenciar seu dinheiro - desde pedir empréstimos a doar para a caridade.

Na China, os pagamentos eletrônicos cresceram 63% entre 2014 e 2015. No Reino Unido, eles já ultrapassaram o uso de cédulas e moedas.

Confiança

A tecnologia está reinventando os pilares das nossas finanças.

Desde o século 16 a.C., as mercadorias eram trocadas por meio de uma moeda - os búzios.

Mais tarde, no século 7 a.C., as moedas passaram a ser cunhadas na Lydia, atual Turquia, a partir do eletrum - um liga natural de ouro e prata encontrada nos leitos dos rios.

Posteriormente, o dinheiro em papel foi introduzido na China. Conhecido como "dinheiro voador" devido à sua conveniência e leveza, era regulado pela autoridade central do país. Segundo Ben Alsop, curador da City Money Gallery do Museu Britânico, em Londres, tal sistema injetou na sociedade um conceito vital - confiança.

Confie nas autoridades, e confie que esse pedaço de papel vale, na verdade, alguma coisa. Assim, por anos, as moedas foram tradicionalmente emitidas por governos a partir de seus bancos centrais.

Agora, as criptomoedas podem ser criadas e armazenadas eletronicamente em um sistema completamente descentralizado. Mais de 1 mil delas existem globalmente, sendo o bitcoin a mais conhecida.

Tudo isso traz à tona questões sobre o controle e a influência. Quem controla a moeda - governos ou redes de computadores? Quem controla o que pagamos - empresas de tecnologia, de processamento de pagamentos ou bancos?

Mas, sem dúvida, a pergunta mais importante é: quem controla os dados sobre nossas transações financeiras: você ou eles?

O poder dos dados

Dentro de um escritório no topo de um prédio de tijolos no leste de Londres, uma startup de inteligência artificial tem 12 funcionários e ambições crescentes.

A Cleo AI opera como uma assistente digital que conecta as contas bancárias dos usuários e os ajuda a gerenciar seu dinheiro. Eles fazem perguntas sobre seus gastos por meio de serviços de mensagens instantâneas, como o Facebook Messenger, e o aplicativo responde.

"Concebi a Cleo para solucionar meu próprio problema", diz o fundador e CEO da empresa, Barney Hussey-Yeo, de 27 anos.

"Achava uma loucura que todo mês entrava no cheque especial. Então, criei a Cleo para se conectar à minha conta bancária e me dizer quando eu estava ficando no vermelho. Isso mudou a minha relação com meu dinheiro", conta.

A assistente virtual foi lançada no Reino Unido e já possui mais de 100 mil usuários, mas Hussey-Yeo sonha alto: ele espera ter 1 bilhão de clientes ao redor do mundo e "lançar uma ofensiva contra os bancos".

Como? Ele argumenta que as assistentes virtuais podem substituir os aplicativos dos bancos, encontrando negócios melhores ao analisar os dados de transação dos últimos 12 meses.

"Se você tem um cartão de crédito e está pagando juros, vamos ajudá-lo a mudar isso. Se você está gastando além do seu limite, vamos ajudá-lo a mudar isso. No futuro, estaremos oferecendo produtos que são mais baratos, melhores e mais rápidos do que o que os bancos estão oferecendo", diz ele.

"A Cleo nunca será um banco de varejo, mas ela vai desempenhar algumas funções de um banco de varejo, como pagar amigos e tomar um empréstimo", acrescenta.

A convicção de Hussey-yo talvez esteja baseada, em parte, na China, onde o aplicativo WeChat foi lançado como um serviço de mensagens instantâneas, mas agora se tornou um imenso e valioso negócio, oferecendo uma gama de serviços financeiros.

Com uma base de clientes entre 20 e 30 anos, e ainda sem ter licença para oferecer crédito, há questões importantes sobre se a Cleo pode ganhar a escala necessária para atender à sua ambição.

Hussey-Yeo sabe dos riscos. Ele começou como cientista de dados na financiadora Wonga, em meio à tentativa de a empresa de se reinventar depois de se tornar alvo de críticas por seu sistema de empréstimos frouxo e antiético. No ano passado, registrou um prejuízo de 65 milhões de libras (R$ 288 milhões em valores atuais).

Um divisor de águas na Europa que pode beneficiar as nascentes empresas de tecnologia financeira como a Cleo, e aumentar a concorrência entre elas, é a Diretiva de Serviços de Pagamentos Secundários da União Europeia.

Em outras palavras, o arcabouço de regras obriga os bancos a abrir sua infraestrutura de pagamentos e os dados dos clientes que eles controlam para terceiros, como fintechs.

Na prática, isso significa que o histórico de gastos de um cliente pode ser compartilhado com outros serviços. Essa informação é valiosa. Por exemplo: muitas empresas gostariam de saber que você gasta muito com gasolina, ou seja, que o carro tem um papel central na sua vida. Ou que você gasta mais do que pode todos os meses.

"Isso permite aos clientes retomarem o controle de seus dados e pagamentos de forma segura", diz Imran Gulamhuseinwala, responsável pela implementação do Open Banking no Reino Unido.

Gulamhuseinwala supervisiona a implementação de um conjunto de regras de programação no Reino Unido chamado Interface de Programação de Aplicativos (APIs, na sigla em inglês), que assegura que todos esses novos serviços e bancos falem entre si.

Em última análise, eles também vão permitir que o pagamento seja feito diretamente, com o consentimento dos clientes. Os bancos vão criar suas próprias APIs no resto da União Europeia, mas o princípio permanece o mesmo. O princípio deve inspirar competição e, segundo Hussey-yep, mudar o equilíbrio de poder.

Mas em quem você pode confiar? Os clientes vão ser bombardeados com ações de marketing confusas, vão rapidamente entregar e perder o controle de sua informação pessoal, e apenas os mais experientes em tecnologia vão se beneficiar disso, segundo Mick McAteer, do Centro de Inclusão Financeira do Reino Unido.

Segundo ele, o Open Banking é uma ideia "tola", que resultará em maior exclusão financeira para aqueles que já têm rendas mais baixas. Diz ainda ser ingênuo que reguladores suponham que os usuários vão ter propriedade sobre seus dados e virar o jogo com os bancos.

Em vez disso, argumenta, há o risco de que esses usuários sejam explorados, ora por meio de negócios oferecendo uma nova forma de empréstimo mais caro, ou por uso dos dados e da informação pessoal revelada nas redes sociais ou em outros locais por indivíduos inescrupulosos.

Quando as carteiras se tornam digitais

Ao redor do mundo, 2 bilhões de pessoas não têm conta bancária, segundo o Banco Mundial. O número está caindo, graças em parte às contas bancárias móveis na África.

No entanto, à medida que novos serviços estão sendo desenvolvidos e novos modelos de pagamento sendo inventados, surgem novos questionamentos sobre aqueles que não conseguem acompanhar a evolução tecnológica.

O que vai acontecer com aqueles que desconhecem os códigos QR (códigos interativos que possuem informação vital) ou aqueles que só conseguem pagar via celular porque não há rede bancária disponível onde moram?

Esse é o quebra-cabeças que a startup Ezetap, lançada na Índia em 2011, se propõe a enfrentar. No país, milhões de pessoas abraçaram a tecnologia móvel, mas uma grande parcela da população ainda usa dinheiro vivo.

Prova disso foram as cenas caóticas registradas logo após o governo indiano tentar tirar cédulas de alto valor nominal de circulação. A Ezetap criou um software que permite ao comerciante com um smartphone aceitar qualquer tipo de pagamento e ver o dinheiro se movimentar até sua conta bancária.

Há também o caso da autorregulação das moedas virtuais. Grandes investidores apostaram no bitcoin, a maior criptomoeda, e centenas de outras foram criadas.

Um número crescente de varejistas está aceitando bitcoins. Mas a volatilidade dos preços e os custos de transação ainda são altos, e há um nível de incerteza sobre isso de forma geral.

Então, por que criptomoedas são importantes? Primeiro, elas estão colocando em xeque as formas tradicionais usadas pelos empreendedores para levantar dinheiro. Por meio das chamadas Ofertas de Moeda Inicial (ICOs, na sigla em inglês), as startups vendem tokens digitais para arrecadar recursos.

Em teoria, esses tokens deveriam se valorizar à medida que são adquiridos por mais pessoas. Tal tática é fácil e rápida, mas também arriscada e não regulada - não se trata, portanto, do tipo de sistema que conta com o apoio das autoridades centrais. Recentemente, o Banco Central da China proibiu os ICOs.

Em segundo lugar, muitos dizem que há um grande potencial no sistema que ampara as criptomoedas - o blockchain. Ele é uma espécie de registro digital das transações, acordos e contratos que não é guardado em um determinado lugar, como um registro do administrador de um banco antigo, mas distribuído entre milhares de computadores ao redor do mundo.

Cada nova transação ou acordo é inserido em um bloco, que então é adicionado a uma cadeia. Se um computador tentar alterar a transação anterior, todos os outros são alertados sobre a tentativa e bloqueiam a transação.

Na prática, esse sistema elimina o intermediário que usualmente verifica essas transações, como as companhias de cartão de crédito, os procuradores ou até mesmo os bancos.

No nosso dia a dia, o blockchain poderia amparar os pagamentos automáticos.

Bryan Zhang, do Cambridge Centre for Alternative Finance, instituto de pesquisa acadêmica sediado na Inglaterra, diz que essas máquinas inteligentes podem pagar uma a outra.

Por exemplo: uma geladeira inteligente poderia encomendar leite fresco e pagar por ele. Em larga escala, um avião atrasado poderia automaticamente pagar uma reparação aos passageiros.

'Perdendo a majestade'

Tudo isso sugere um desafio para o dinheiro em espécie - o tipo de pagamento que está perdendo a majestade.

A realidade, contudo, nos mostra que seu reinado está longe de acabar. Cédulas e moedas em circulação vêm se mantendo relativamente inalteradas em grandes economias do Ocidente, segundo o Banco de Compensações Internacionais.

Nos Estados Unidos, o valor em circulação do dinheiro aumentou entre 2011 e 2015. O número de caixas eletrônicos cresceu fortemente no Bric - Brasil, Rússia, Índia e China - e mudou pouco nos países do Ocidente.

Isso para não dizer que eles evoluíram. Os caixas eletrônicos abraçaram a tecnologia que poderia ser sua grande ameaça para criar um "banco dentro de uma caixa".

Cinquenta anos atrás, uma multidão encantada viu um caixa eletrônico pela primeira vez do lado de fora de uma agência do banco Barclays, em Londres. Hoje, segundo a empresa NCR, seu recém-desenvolvido caixa eletrônico, com links de vídeo e interatividade móvel, pode realizar 80% dos serviços disponíveis dentro de uma agência tradicional.

Em Portugal, onde há a maior proporção na Europa Ocidental de caixas eletrônicos por pessoa, a rede bancária evoluiu e hoje aceita pagamentos de impostos, de contas e até ingressos de shows e cinema.

Neste sentido, os caixas eletrônicos podem se tornar as novas agências, mas de forma lenta.

Os bancos, apesar de sua imensa riqueza, serão menos agéis em desenvolver novos produtos do que as startups de fintech. Sendo assim, vão precisar colaborar com esses potenciais disruptores para enfrentar o desafio posto por empresas de tecnologia muito maiores, que conseguem concorrer com eles em escala.

Enquanto isso, os clientes pelos quais estão competindo podem se beneficiar de produtos mais convenientes e mais baratos, mas devem permanecer alertas sobre os riscos que a automação pode apresentar.

O dinheiro sempre fala mais alto, diz o ditado popular, mas talvez não mais por cédulas e moedas (BBC Brasil, 20/12/17)

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