SANTANA, Edvaldo. “O custo de não racionar”. Valor Econômico. Rio de Janeiro, 15
de março de 2016.
Estava há poucos dias em uma padaria em Florianópolis quando ouvi uns argentinos
que reclamavam da má qualidade da energia elétrica no Norte da ilha. Instantes
depois, a filha de um deles pediu sanduíche quente de queijo de cabra. A padaria
não tinha queijo de cabra e o sanduíche seria frio, pois estavam sem energia. O pai,
irritado, falou: "es lo que hay". São tantos os problemas, que poucos percebem o que
aconteceu com a relação oferta/demanda de energia elétrica entre 2014 e 2015.
A partir de 2011, foram vários os debates sobre um racionamento, com o governo na
defensiva. No Brasil, racionar é uma palavra proibida, sinônimo de perda de eleição.
Só que isso tem um custo, que pode ser medido pelos resultados de 2015.
É interessante olhar alguns números. Em 2014, em razão da severa escassez de
água, o custo marginal de curto prazo, que representa quanto se gasta para suprir a
carga com os recursos energéticos disponíveis, ficou acima de R$ 688/MWh. Em oito
das 52 semanas daquele ano tal custo foi maior que o custo do déficit, sinalizando
que racionar sairia mais barato. Ora, se o preço pago pelo consumidor não reflete o
custo do produto, algum desequilíbrio há. Conta de não reduzir o consumo na hora
certa certamente resultará em um valor superior a 1,5% do PIB.
Vejam que resultado curioso. Em 2015, a escassez de água foi mais severa, mas o
custo da energia no mercado foi menor, na média R$ 287/MWh. Em outras palavras,
o produto ficou mais escasso, mas seu preço caiu 60%. Chega a ser bizarro. Alguém
ainda duvida de que somos capazes de revogar a Lei da Oferta? Se isso não foi
objeto do ilusionismo, alguma explicação existe.
A primeira é bem razoável. O preço do mercado de curto prazo tem um teto, que em
2014 era R$ 822/MWh. A Aneel, no fim daquele ano, o reduziu para R$ 388/MWh.
Logo, nas semanas em que o custo marginal superou o teto, a energia teve valores
artificialmente menores. Só que o teto anterior já não refletia o custo de um recurso
energético relevante, daí a razoabilidade da mudança.
A segunda explicação é técnica. Apesar do agravamento da crise de água, o
consumo em 2015 foi atendido com o uso intensivo de térmicas, algumas com custos
superiores a R$ 1200/MWh. Até aí nenhuma novidade, pois em 2014 já fora assim.
Porém, os custos de grande parte dessas usinas não formavam o preço, sendo elas
acionadas por decisões exógenas ao algoritmo de otimização, sob o argumento da
segurança energética.
Assim, o custo real era bem maior do que o teto, e tudo que estivesse acima dele
seria pago por alguém, isto é, pelas hidrelétricas, pelos grandes consumidores do
mercado livre e por todos os demais consumidores, uma vez que a conta tem que
fechar. O valor aproximado de tudo isso é R$ 17 bilhões. Virou um pandemônio de
subsídios cruzados. O resultado é conhecido: as hidrelétricas entraram na Justiça
para não pagar pela segurança energética e a conta dos consumidores, que é antes
paga pelas distribuidoras, ficou inviável, pois essas não tinham esse dinheiro.
Em 2015, o governo e a Aneel passaram a falar em realismo tarifário. Um tarifaço foi
aplicado em fevereiro desse ano. Em uma só tacada as tarifas aumentaram mais de
30%. O consumo de energia, então, caiu absurdamente, sendo, em fevereiro de
2016, quase 13% menor do que em 2013, reflexo, vejam só, de um racionamento por
preço, apelidado de realismo tarifário. O interessante é que, na essência, a medida
foi adequada. Se o consumo não tivesse se reduzido, o sistema entraria em colapso,
pois mesmo para atender essa demanda reduzida foi necessário acionar todas as
térmicas o ano inteiro.
O problema está no quando fazer, na forma e nas consequências. No primeiro caso,
seria mais produtivo se a redução do consumo acontecesse no início de 2014, um
ano eleitoral. Os reservatórios não teriam esvaziado tanto. Bastaria reduzir a carga
em 6%, cerca de 3.500 MW médios, montante imperceptível para os consumidores.
Quanto à forma, em uma economia movida a consumo das famílias é uma
imprudência o racionamento por preço, pois a indústria reduz suas atividades,
gerando desemprego, que reduz o consumo, que reduz o PIB e assim
sucessivamente. Em 2001, o racionamento foi por quotas, sendo menores para a
indústria. Isso explica porque, mesmo com um racionamento de 20%, o PIB cresceu
menos, apenas 1,3%, mas longe da recessão de 2015. A indústria não foi
desestruturada.
Quanto às consequências, uma já foi descrita, que é a assustadora queda de
produção da indústria, do PIB e o aumento do desemprego. Para o Banco Central, o
PIB de 2015 pode cair 4%. Se 8% disso foram determinados pelo aumento dos
custos da energia, o não racionamento representa R$ 18 bilhões. A segunda
consequência é muito grave. O consumo de energia previsto para 2016 seria de 72
GW médios, mas não chegará a 63 GW médios.
Isso tem dois efeitos: se chover o esperado, haverá sobra de energia, o que parece
uma boa notícia, pois o preço no mercado tende ao piso. A péssima notícia é que o
sistema se expandiu para atender 72 GW médios, com as distribuidoras obrigadas a
contratá-los por R$ 160/MWh. Isso corresponde a mais de R$ 11 bilhões, que é o
custo da energia que será paga e não utilizada. A terceira consequência é a penúria
financeira das concessionárias, que prejudica a qualidade do serviço, como
perceberam os argentinos em Santa Catarina.
Assim, o custo do não racionamento seria R$ 46 bilhões, e não foram incluídos os
custos do desemprego, dos empréstimos das distribuidoras, nem os custos dos
excedentes das bandeiras tarifárias. Certamente resultará em um valor superior a
1,5% do PIB. Isso só aconteceu porque o governo acreditou mais em suas
intervenções do que no mercado. Mas não "es lo que hay". Espera-se que os erros
sirvam como aprendizado, dando-se mais atenção aos incentivos e à liberdade de
escolha do consumidor. Por exemplo, o baixo preço atual do mercado estimulou, em
janeiro de 2016, uma forte migração da carga para o ambiente livre, o que, pelo
menos, ajuda a conter a gravidade do ciclo depressivo, que parece não ter fim.
Edvaldo Santana, ex-diretor da Aneel, é doutor em Engenharia de Produção